terça-feira, 12 de agosto de 2008

REMORÇO


Ele ainda não havia morrido... andava pela cidade com uma ludidez ausente, seus olhos suavam lágrimas e seu sorriso, amarelo e só, dava o tom melancólico característico de seu rosto. Nessa andança pela cidade parou na praça do papa, estacionou o carro, foi até a cruz, olhou pra ela, se ajoelhou como quem cai... e ali ficou por algum tempo. Não sei se orava, chorava ou coisa do tipo, só sei que ficou ali.

Ao se levantar puxou do bolso um pente, penteou os cabelos, enxugou com as mãos as lágrimas quase invisíveis e sentou na rampa. Na rampa ficou mais um bom tempo, a noite era fria, ele se abraçou, depois aqueceu as mãos com o sopro quente da boca várias vezes, mas permanecia ali, intacto, demasiadamente ausente, olhar fixo, mas agora, esperançoso.

Levantou, tranquilo e calmo e caminhou até o carro, entrou, deu a partida e foi... ligou o rádio do carro e no rádio cantava uma música triste - Vento no litoral - ele dirigia e ouvia a música com atenção.

Depois de percorrer a cidade de uma ponta a outra, do sul ao norte, chegou no bairro Guarani, na rua Carimbé, na casa número 137, parou o carro, exitou em descer, mas desceu, limpou o rosto, respirou fundo e apertou a campainha... depois disso, o silêncio, ele ali imovél, sem resposta e a casa ainda escura. Passou em sua cabeça por um instante correr, voltar atrás, mas não o fez, permaneceu ali, mas também sem apertar de novo. De repente uma luz rompe com a escuridão da casa, uma moça loira, alta e sorridente abre as cortinas da porta de vidro que dá de frente ao portão para ver quem apertava a campainha aquela hora da noite e quando vê que é ele... o sorriso se esvai e a impressão que dar é que ela tem vontade de fechar a cortina, apagar a luz e voltar ao interior da casa, mas não...

Abre a porta de vidro, acende a luz da varanda exterior, senta num sofá de pátio dois lugares e parece esperar ele tomar coragem para entrar e sentar ao lado dela, assim ele o fez... sem ser convidado, forçou o portão, entrou com passos curtos, mas firmes, subiu meia dúzia de degraus e sentou...

Por alguns minutos eles ficaram ali, lado-a-lado e só produziam um silêncio ensurdecedor...

Ela quebra o pacto de silêncio e diz: - Por que veio?

Mais silêncio...

- Não aguentava mais...

- E por que foi?

- Não aguentava mais...

- Você sempre foi um fraco mesmo, sua vida é uma fuga! Fugiu de mim, fugiu da filha... covarde!

- Te ver na cama, na nossa cama, com outro homem foi duro demais, não dei conta do rojão...

Ela não respondeu nada... ficou em silêncio... eles se olharam, um olhar profundo, os olhos mareados... estavam nervosos, uma espécie de nervosismo adolescente, aquela coisa de primeiro encontro... ele queria abraçá-la, pedir perdão pelo demasiadamente ausente, tentar de novo, mas foram surpreendidos por um cara, bem mais velho, que chegava à varanda bocejando, limpando os olhos e esboçando gritar por ela, mas ao vê-los ali, baixou a cabeça e voltou para dentro da casa.

Ela, meio sem graça, sentenciou: - Não temos mais nada para conversar, é melhor cê ir!

Ele respondeu: - Agora não é mais por nós, é por minha filha!

Ela se levantou, entrou na casa e voltou com uma foto da criança, já com 6 anos e disse: - Tome, leve, olhe no espelho, ela nunca foi sua.

Ele pegou a foto, tocou o rosto da criança, tocou seu próprio rosto, olhou para ela, lagrimou, guardou a foto no bolso da camisa, levantou, desceu os mesmos degraus que subiu, abriu o portão, fechou, entrou no carro e nunca mais se teve notícias dele.

Ela...

Bem... ela um dia depois adoeçeu de febre inexplicável, delirou, gritou por ele e morreu... morreu de morte que não souberam explicar...

Remorso, arrependimento, culpa - causa morte - coquitel de conturbada existência humana.

4 comentários:

  1. Interessante o jogo de vozes na configuração de seu conto. Parabéns

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  2. A dor de existir... como dizia caetano, todos sabemos bem a dor de existir.

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  3. A tonalidade preto e branco inerente ao enredo lembra-me o simbolismo brasileiro, bem como a 2ª geração romântica. Belo texto e um escritor promissor!

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