terça-feira, 4 de outubro de 2011

RONDA

“De noite eu rondo a cidade
A lhe procurar, sem encontrar
No meio de olhares espio
Em todos os bares
Você não está...
Volto prá casa abatida
Desencantada da vida
O sonho, alegria me dá
Nele você está...
Ah! Se eu tivesse
Quem bem me quisesse
Esse alguém me diria
Desiste, essa busca é inútil
Eu não desistia ...
Porém com perfeita paciência
Volto a te buscar
Hei de encontrar
Bebendo com outras mulheres
Rolando dadinhos
Jogando bilhar...
E nesse dia então
Vai dar na primeira edição
Cena de sangue num bar
Da avenida São João...”

(Paulo Vanzolini)



Conheceram-se adultos. Ela, sempre muito estudiosa, tirou o ensino médio aos 17, entrou cedo na faculdade de pedagogia e lá o conheceu. Ele, da turma do fundão, tirou o ensino médio via supletivo, sem apoio de pai ou mãe, começou a trabalhar cedo e sabia o que era a dureza da vida.


Na faculdade de pedagogia particular que estudou, conheceu-o na máquina de xerox. Ele era o famoso João da cópia, ralou demais para conseguir aquele espaço, trabalhou na feira, lavou o carro do reitor por alguns anos, juntou dinheiro, comprou a máquina e negociou o espaço diretamente com o reitor. O que lhe custaria ainda algumas lavagens de carro quinzenais, fora o aluguel. Mas homem de trabalho que era não tinha medo da dureza e conseguiu seu espaço. Aprendeu a mexer com a máquina de xerox com um senhor com o qual havia trabalhado anos atrás.


Ela, a professorinha, tinha sempre desconto nas cópias com ele, às vezes nem pagava. Ela aceitava, pois a quantidade de cópias pesava no orçamento.


Jovens, recém-adultos, depois de tantas cópias, tantas páginas, apaixonaram-se.


Ele, como em todo início, mil gentilezas, muitos filmes, nada de amigos, era somente ela. E ela por sua vez, sem cobranças, muito pão de queijo, beijos e amores.


Casaram-se. Ela formada, concursada e lotada em uma escola no centro, rua São Bento, início da São João. Ele, microempresário do ramo de cópias, já mandava alguém lavar o carro do reitor. Nunca ficariam ricos, mas conseguiram se livrar da extrema pobreza e fixaram-se num apartamentozinho apertado entre os prédios ocupados com escritórios de representações, advogados, médicos ou outra atividade prestadora de serviço. Para ele a facilidade para lidar com a boemia do centro, para ela a facilidade de morar perto do trabalho.


O tempo passou e com ele veio a rotina, a mesmice, um desafeto sereno, o descuido descuidado, as horas se passam, o futebol toma mais tempo, a bebida com os amigos se torna frequente, camisa com marcas de baton, perfumes estranhos...


Ela, por sua vez, aumenta a carga horária de aulas, traz mais trabalho pra casa, são mais provas para elaborar e corrigir.


Os dois se envolvem numa ausência presente mútua. Surgem as brigas, discussões mais ríspidas. Ela prefere as provas e ele os amigos, ela a escola e ele o bar, dificilmente jantavam ou almoçavam juntos.


Ela, mais do que ele, incomodava-se com a demora na noite, feria-lhe o baton, pertubava-lhe os estranhos perfumes . Ele, agora frio e distante, pouco se ocupava dela.


Numa dessas noites solitárias, ela se ocupou de pensar nele, bateu uma saudade antiga, ela levantou do sofá, foi ao quarto pegou uma camisa dele e se irritou com o estranho perfume, revirou os bolsos e leu o bilhete manchado de baton e com cheiro de cerveja e cigarro que dizia: “ela não te merece, vamos fugir”.


Uma mistura de raiva, dor e mágoa se apoderaram dela e, mesmo de noite, ela saiu a rondar a cidade a lhe procurar, mas sem o encontrar.


Ela continua e no meio de olhares espia em todos os bares e ele não está.


Volta pra casa abatida, desencantada da vida, mas mesmo assim, nesta noite sonha com ele e se alegra.


Ela não foi trabalhar, liga para uma amiga confidente, fala sobre a ausência do marido, a indiferença, a distância, a frieza, a inércia, a tristeza, a dor, a angústia, a desilusão e a amiga sentencia: - Desiste, essa busca é inútil.


Mas ela não desiste, ela sabe que ele está ali, tão perto e tão longe, pelos bares... bebendo sua vida. Com perfeita paciência, ela volta a buscá-lo e o encontra bebendo com outras mulheres, rolando dadinhos e jogando bilhar...


E um dia depois deu na primeira edição: “Cena de sangue num bar da Avenida São João”.


Trecho da notícia: “(...) testemunhas deram conta de que a jovem chamou a vítima, mas a vítima a tratou com indiferença, virou um copo de cerveja, puxou uma mulher que estava na roda e a beijou. A jovem tirou da bolsa um revólver calibre 38, de acordo com a perícia. Todos correram, menos ele. A mulher beijada por ele também correu, ele tomou mais um gole de cerveja, sentou em uma cadeira e a olhou nos olhos. Ela, por sua vez, perguntou: - Por quê? e disparou um tiro certeiro no meio da testa da vítima, ele nem tombou da cadeira, só a cabeça que caiu por cima do ombro e ali morreu de olho aberto. Logo em seguida ela olhou para os lados e, chorando muito, deu um tiro na boca e caiu por cima da poça de sangue da vítima (...).



2 comentários:

  1. Interessante essa ponte entre a MPB e a literatura!

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  2. Essa aqui já vai para minhas aulas na UEPA em Janeiro.
    Tema a ser trabalhado: reforçamento positivo (inicio da relação); extinção (frieza da relação ao passar do tempo); punição (mata ele); reforçamento negativo: fuga-esquiva (suicidio dela).

    Ótima história, embora o final não seja feliz, essa é a vida real de algumas pessoas!

    Nicole
    Psicóloga - CRP 02861
    Mestra em Teoria e Pesquisa do Comportamento - NTPC- UFPa

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