domingo, 27 de dezembro de 2009

TROCANDO EM MIÚDOS

Ele nunca pensou que poderia deixá-la, nunca pensou que tudo terminaria assim.

- Vou lhe deixar a medida do Bonfim. Sentenciou Ulisses.

Ulisses e Helena conheceram-se no carnaval de Salvador, ela, prostituta, ele, funcionário público, financeiramente estabilizado e, na época, responsalvemente irresponsável. Foi coisa de boteco, muita gente, música alta, trio elétrico passando em algum lugar próximo dali. Ele chegou, sentou, batucou alguma coisa na mesa, chamou o garçom e perguntou: - Alguma disponível aí? O garçom, afoito por essa gorjeta, não se demorou e apareceu com Helena pelas mãos.

- Taí doutor, coisa boa!

Ulisses, sem romantismo a pegou pelo braço e subiu. Ela, sem meias palavras, antes de tirar a roupa, quis negociar e depois de tudo acertado, aconteceu o esperado.

Depois de tudo, Ulisses virou para o lado, tocou o rosto de Helena e já não a olhava com os mesmos olhos de outrora. Seu olhar, agora, era demorado e terno. Helena, nunca percebida com tanta intensidade, quis se alegrar. E nesse momento peculiar, Ulisses falou:

- Fica comigo?
- Não já estou!?

- Não te quero mais assim, te quero pra sempre e só minha.

Helena sorriu um sorriso triste. O sorriso foi pela alegria em ouvir o convite e o triste foi por não acreditar nele.

Ulisses levantou, foi até o banheiro, lavou o rosto, voltou, abraçou Helena e perguntou novamente:

- Fica comigo?

Helena, num misto de surpresa e aborrecimento, disse: - Não brinque comigo, a vida já tem brincado demais.

- Eu não sou a vida, eu sou Ulisses e falo sério! Fica comigo?

E Helena, na esperança de que o conto de fadas virasse livro, aceitou.

E como em Manoel Bandeira Ulisses “tirou Helena da vida, instalou-a numa bela casa em Salvador, pagou médico, dentista, manicura... Dava tudo quanto ela queria”.

Passaram-se os anos...

E numa tarde cinza, por volta das 17:00 horas, chegando Ulisses sorrateiramente em casa com o vestido tão desejado por Helena, a contemplou fogosa sobre um homem e sobre a cama do casal. Ulisses dominou o instinto e, literalmente contemplou a cena, pois aquilo não era para ser visto, o momento requeria contemplação, ele não deveria sentir a cena, mas pensá-la.

Ulisses, contrariando o nome que trazia consigo, recuou mais sorrateiramente ainda e do lado de fora esperou o troiano sair, e como herói, dos mais bobos, entrou feliz, com o vestido nas mãos, o sorriso teatral no rosto e muito amor para dar.

Helena, com o cinismo que agora conhecemos, recebeu o presente e jogou-se no braço de Ulisses.

Ulisses, na ânsia de não explodir, começou a pensar, por horas e dias no que fazer sobre o assunto, com o passar do tempo seu sorriso ficou mais cinza, a expressão alegre perdia vida, os abraços se afrouxaram, chegar do trabalho começou a virar um sacrifício. Os presentes cessaram, o sorriso se foi e as máscaras estavam no limiar de caírem.
Helena sem saber (ou sabendo) o que acontecia, não resistiu à frieza, a indiferença e ao olhar frígido, descontente e distante de Ulisses, até que um dia criou coragem, esperou Ulisses chegar, por volta das 18:00 horas e disse:

- Não quero mais!

Ulisses respondeu: - Vou lhe deixar a medida do Bonfim, mas fico com o disco do Pinxinguinha, sim? O resto é seu.

Helena, não esperando a resposta, nem a intensidade da frieza que permeava a mesma, perguntou: Por quê?


Ulisses respondeu: - Trocando em miúdos, pode guardar as sobras de tudo que chamam lar, as sombras de tudo que fomos nós, as marcas de amor nos nossos lençóis, as nossas melhores lembranças.

Helena, nervosa, quem sabe arrependida, mas não confidente, relutava: - Por quê? Fale, fale... eu não mereço isso!

Neste momento Ulisses pensou em deixar de ser herói e virar vilão, mas ao olhá-la no fundo dos olhos viu que ali estava alguém que não valia a pena... Desejou agredi-la, berrar, gritar e dizer verdades, mas se conteve, concluiu que naquele relacionamento mentiroso a verdade não tinha vez e respondeu: - Eu, no meu mais íntimo, já tive a esperança de tudo se ajeitar, mas pode esquecer.

Helena, tomada por um desespero agressivo, gritou: - E a nossa aliança!?

Ulisses sabia que a única aliança que permanecia entre eles era a de ouro e disse: - Aquela aliança, você pode empenhar ou derreter.

Helena, já inerte, vencida, mas ainda ré sem confissão, caiu sobre as pernas, chorosa e nua de argumentos que pudesses fazê-lo parar com aquilo, fazer Ulisses ficar... Mas porque Helena, por que o traías, ele foi teu e te fez dele no momento em que eras de todos e de ninguém. Por que não respeitaste isso e o traiu de maneira tão vil?

Ulisses, como se proferisse um discurso, disse: - Devo dizer que não vou lhe dar o enorme prazer de me ver chorar, nem vou lhe cobrar pelo seu estrago, meu peito tão dilacerado. Aliás, aceite uma ajuda do seu futuro amor pro aluguel.

Ao ouvir “do seu futuro amor” Helena quis interrompê-lo, mas essa foi a sua confissão, ficou em silêncio e Ulisses continuava: - (...) devolva o Neruda que você me tomou e nunca leu.

Ulisses bateu o portão sem fazer alarde, levou a carteira de identidade, parou num bar e tomou várias e a saideira, sempre com uma sensação estranha de “muita saudade”.

Passaram-se alguns dias, voltou a casa, pegou uma última mala e saiu dali com a leve impressão de que já ia tarde.

Depois disso nunca mais se soube notícias de Ulisses, e Helena voltou para a vida... Alguns dizem que ela chama a todos os seus clientes de Ulisses e chora muito depois dos programas...

Um comentário:

  1. Que beleza, uma verdadeira jornada.Grande professor Wagner que passa ser conhecido agora, como o Homero contemporâneo. Genial.

    ResponderExcluir

Diz aí... o que pensas?