quinta-feira, 13 de outubro de 2011

FUNERAL DE MORTO


- Depois que me deixaste, eu sofri.


- Sofri tanto, tanto, tanto... pensei que iria morrer. Era uma tristeza que vinha de cima, de baixo, do lado, de frente, de trás. Deixei até de tomar sorvete porque lembrava de ti.


- Não fazias questão de te esconder com outras mulheres, passavas por mim com elas e parecias zombar de mim pra elas, pois todas elas sorriam ao passar por mim... aquilo me afligia, deixava-me louca, era um misto de vergonha, tristeza, arrependimento. Eu perguntava pra mim mesma: - Por que ele faz isso comigo? Eu só o amei. Fazia tudo pra ele. Tratava-o como rei...


- Depois de ti nunca mais fiquei com ninguém. Criou-se um medo em mim...


- Nossa filha... nossa filha, tua única filha, tão linda, tão inteligente, tão doce, nem a ela respeitaste... como pôde deixá-la vê-lo com outra em nossa cama? És um animal irracional. Ela nunca fala disso, só prefere não ver suas fotos, nem ouvir falar teu nome. Tenho a impressão que a palavra pai a incomoda. No dia dos pais ela se tranca no quarto e passa o dia inteiro ouvindo música alta e assistindo aos filmes baixados da internet. Só a vemos no dia seguinte, com um sorriso cinza, quase triste que vai se colorindo com os outros dias até ficar cinza e quase triste no próximo dia dos pais...


- Nunca tentaste se reaproximar, nunca demonstraste arrependimento, nem um cartão, nem uma ligação. Não precisava ser pra mim! Mas para a tua filha, pra tua filha, pra tua filha, seu filho da puta, miserável, bandido... nós te amávamos! Nós te amávamos... (choro forte, soluço, choro descontrolado...)


Ninguém sabia o que fazer... todos estavam ali escutando o desabafo íntimo público... até que a filha veio até ela e a tirou de cima do corpo do pai...


Ela, desesperada, abraçava a filha com força e gritava: - Ele se foi! Ele se foi! Teu pai se foi... (choro alto e forte).


A filha, com serenidade sobrenatural, abraçou a mãe com força, afastou o rosto dela de seus ombros, olhou nos seus olhos e disse: - Ele se foi há muitos anos. Continuaremos só nós duas como sempre foi.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

RONDA

“De noite eu rondo a cidade
A lhe procurar, sem encontrar
No meio de olhares espio
Em todos os bares
Você não está...
Volto prá casa abatida
Desencantada da vida
O sonho, alegria me dá
Nele você está...
Ah! Se eu tivesse
Quem bem me quisesse
Esse alguém me diria
Desiste, essa busca é inútil
Eu não desistia ...
Porém com perfeita paciência
Volto a te buscar
Hei de encontrar
Bebendo com outras mulheres
Rolando dadinhos
Jogando bilhar...
E nesse dia então
Vai dar na primeira edição
Cena de sangue num bar
Da avenida São João...”

(Paulo Vanzolini)



Conheceram-se adultos. Ela, sempre muito estudiosa, tirou o ensino médio aos 17, entrou cedo na faculdade de pedagogia e lá o conheceu. Ele, da turma do fundão, tirou o ensino médio via supletivo, sem apoio de pai ou mãe, começou a trabalhar cedo e sabia o que era a dureza da vida.


Na faculdade de pedagogia particular que estudou, conheceu-o na máquina de xerox. Ele era o famoso João da cópia, ralou demais para conseguir aquele espaço, trabalhou na feira, lavou o carro do reitor por alguns anos, juntou dinheiro, comprou a máquina e negociou o espaço diretamente com o reitor. O que lhe custaria ainda algumas lavagens de carro quinzenais, fora o aluguel. Mas homem de trabalho que era não tinha medo da dureza e conseguiu seu espaço. Aprendeu a mexer com a máquina de xerox com um senhor com o qual havia trabalhado anos atrás.


Ela, a professorinha, tinha sempre desconto nas cópias com ele, às vezes nem pagava. Ela aceitava, pois a quantidade de cópias pesava no orçamento.


Jovens, recém-adultos, depois de tantas cópias, tantas páginas, apaixonaram-se.


Ele, como em todo início, mil gentilezas, muitos filmes, nada de amigos, era somente ela. E ela por sua vez, sem cobranças, muito pão de queijo, beijos e amores.


Casaram-se. Ela formada, concursada e lotada em uma escola no centro, rua São Bento, início da São João. Ele, microempresário do ramo de cópias, já mandava alguém lavar o carro do reitor. Nunca ficariam ricos, mas conseguiram se livrar da extrema pobreza e fixaram-se num apartamentozinho apertado entre os prédios ocupados com escritórios de representações, advogados, médicos ou outra atividade prestadora de serviço. Para ele a facilidade para lidar com a boemia do centro, para ela a facilidade de morar perto do trabalho.


O tempo passou e com ele veio a rotina, a mesmice, um desafeto sereno, o descuido descuidado, as horas se passam, o futebol toma mais tempo, a bebida com os amigos se torna frequente, camisa com marcas de baton, perfumes estranhos...


Ela, por sua vez, aumenta a carga horária de aulas, traz mais trabalho pra casa, são mais provas para elaborar e corrigir.


Os dois se envolvem numa ausência presente mútua. Surgem as brigas, discussões mais ríspidas. Ela prefere as provas e ele os amigos, ela a escola e ele o bar, dificilmente jantavam ou almoçavam juntos.


Ela, mais do que ele, incomodava-se com a demora na noite, feria-lhe o baton, pertubava-lhe os estranhos perfumes . Ele, agora frio e distante, pouco se ocupava dela.


Numa dessas noites solitárias, ela se ocupou de pensar nele, bateu uma saudade antiga, ela levantou do sofá, foi ao quarto pegou uma camisa dele e se irritou com o estranho perfume, revirou os bolsos e leu o bilhete manchado de baton e com cheiro de cerveja e cigarro que dizia: “ela não te merece, vamos fugir”.


Uma mistura de raiva, dor e mágoa se apoderaram dela e, mesmo de noite, ela saiu a rondar a cidade a lhe procurar, mas sem o encontrar.


Ela continua e no meio de olhares espia em todos os bares e ele não está.


Volta pra casa abatida, desencantada da vida, mas mesmo assim, nesta noite sonha com ele e se alegra.


Ela não foi trabalhar, liga para uma amiga confidente, fala sobre a ausência do marido, a indiferença, a distância, a frieza, a inércia, a tristeza, a dor, a angústia, a desilusão e a amiga sentencia: - Desiste, essa busca é inútil.


Mas ela não desiste, ela sabe que ele está ali, tão perto e tão longe, pelos bares... bebendo sua vida. Com perfeita paciência, ela volta a buscá-lo e o encontra bebendo com outras mulheres, rolando dadinhos e jogando bilhar...


E um dia depois deu na primeira edição: “Cena de sangue num bar da Avenida São João”.


Trecho da notícia: “(...) testemunhas deram conta de que a jovem chamou a vítima, mas a vítima a tratou com indiferença, virou um copo de cerveja, puxou uma mulher que estava na roda e a beijou. A jovem tirou da bolsa um revólver calibre 38, de acordo com a perícia. Todos correram, menos ele. A mulher beijada por ele também correu, ele tomou mais um gole de cerveja, sentou em uma cadeira e a olhou nos olhos. Ela, por sua vez, perguntou: - Por quê? e disparou um tiro certeiro no meio da testa da vítima, ele nem tombou da cadeira, só a cabeça que caiu por cima do ombro e ali morreu de olho aberto. Logo em seguida ela olhou para os lados e, chorando muito, deu um tiro na boca e caiu por cima da poça de sangue da vítima (...).